China perde o controle dos Jogos Olímpicos
'A China há muito aguardava para se exibir como uma anfitriã cosmopolita e tolerante dos Jogos Olímpicos. Mas o evento esportivo já se transformou em um desastre de relações públicas para o país. A repressão no Tibete e outras em andamento revelaram o quanto o país continua sendo um Estado policial'
A China há muito aguardava para se exibir como uma anfitriã cosmopolita e tolerante dos Jogos Olímpicos. Mas o evento esportivo já se transformou em um desastre de relações públicas para o país. A repressão no Tibete e outras em andamento revelaram o quanto o país continua sendo um Estado policial. A imagem de Qianci, quatro meses, nos braços de sua mãe, Zeng Jingyan, é difícil de esquecer. A menininha estava chorando a plenos pulmões, seu rosto franzido um retrato do medo. É claro, ela não sabia por que tantas câmeras se debruçavam sobre ela, a cegando com suas luzes e a assustando com seus microfones suspensos assustadoramente próximos de seu rosto. Tudo o que ela conseguia ouvir era sua mãe, amaldiçoando e chorando ao mesmo tempo, condenando amargamente o governo e enxugando corajosamente as lágrimas de seu rosto. No final a mãe retirou a criança do meio da comoção e a levou para casa, para o condomínio fechado onde vive, um exemplo luxuoso da renovação urbana pré-olímpica em Tongzhou, um subúrbio de Pequim. A comunidade é chamada de "Bo Bo Freedom City".O nome é o máximo do cinismo. Qianci passará pelo menos parte de sua infância nesta "Cidade da Liberdade" sem seu pai, Hu Jia, 34 anos. Um tribunal em Pequim acabou de sentenciar o dissidente Hu a três anos e meio de prisão pelo que chamou de "incitar à subversão do poder do Estado", um ato que consistia de Hu supostamente ter publicado cinco artigos na Internet criticando o governo chinês.Na verdade, os juízes condenaram Hu, um especialista em informática, por ter divulgado uma espécie de mensagem de boas-vindas aos convidados da China aos 29º Jogos Olímpicos que os governantes em Pequim não podiam tolerar. Aos olhos deles, o que Hu escreveu ameaça todo o seu sistema de governo. "Venha a Pequim", Hu escreveu em uma carta aberta aos visitantes em setembro passado, "mas não esqueça que esta imensa celebração, os vastos oceanos de flores, os sorrisos das recepcionistas e as orgias de fogos de artifício, que esta cidade imaculada com suas arenas esportivas de vanguarda e avenidas margeadas por bandeiras de todos os países imagináveis, que esta enorme evocação de harmonia sob o lema ditado pelo partido -'Um Mundo, Um Sonho'- tem um lado sombrio".
Ativistas pró-Tibete carregam a "tocha da independência" durante manifestação em março
'Tortura e opressão'
Na verdade, para muitos chineses é mais um pesadelo do que um sonho, às vezes um sangrento. Ele oprime um país que, segundo Hu, "não tem eleições, não tem liberdade religiosa, não conta com tribunais independentes e nem com sindicatos independentes". A China é um país, escreveu Hu, "no qual uma polícia secreta eficaz mantém tortura e opressão, e um no qual o governo até mesmo emprega a violação de direitos humanos e não está preparado para cumprir suas obrigações internacionais".É claro, estas palavras são as de um obstrucionista, cuja imagem da China é a de um homem que passou anos fazendo campanha em prol de pacientes de Aids e peticionários que perderam seus imóveis em conseqüência do frenesi das obras olímpicas de Pequim. O fato de sua visão ser verdadeira é algo que ele agora experimentará pessoalmente. Estes são dias sombrios para a China, para os Jogos Olímpicos e para o restante do mundo.Após a supressão pelo governo chinês da rebelião na capital do Tibete, Lhasa, e nas imensas províncias do oeste do país, o Ocidente está sofrendo o choque da compreensão. Muitos achavam que a China, ao ascender à condição de potência econômica moderna ao se beneficiar de uma globalização ao estilo Ocidental, estava deixando para trás um passado repleto de violações de direitos humanos. Agora, ela repentinamente se revela de novo como sendo uma deprimente ditadura comum à moda antiga -e como um Estado policial em perfeito funcionamento, no qual se erguer em protesto é uma tarefa perigosa.Quase todo dia traz uma nova desilusão amarga para os estrangeiros que estavam dispostos a admirar a China, a se maravilhar com o horizonte de Xangai, com o frenesi de modernização que tomou a economia chinesa e com os congestionamentos de tarde da noite, criados pelos proprietários orgulhosos dos novos carros nas megacidades chinesas. Agora, as autoridades chinesas estão ocupadas frustrando as esperanças de que a ascensão da China à riqueza e poder global automaticamente levaria à liberalização política. Ou que os cafés Starbucks inevitavelmente encorajariam a discussão democrática. Ou que sedãs Audi poderiam garantir liberdade ilimitada. Qualquer uma dessas aspirações agora claramente são uma coisa do passado.
Ironicamente, são os Jogos Olímpicos -vistos como uma espécie de recompensa ao boom econômico bem-sucedido da China- que agora estão revelando quão pouco a China mudou desde que tanques tomaram a Praça Tiananmen, em 1989, e esmagaram um nascente movimento democrático. "Está cada vez mais claro que grande parte da atual onda de repressão está ocorrendo não apesar das Olimpíadas, mas na verdade por causa das Olimpíadas", escreveu a Anistia Internacional em um relatório do início de fevereiro sobre a repressão aos ativistas na China. Parece que na China, que muitos no Ocidente tendiam a considerar como uma espécie de ditadura rica e benevolente, no final as coisas não mudaram muito.
DER SPIEGEL - publicado em tradução pelo Portal UOL - o ótimo artigo (em 3 longas partes ) pode ser consultado em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/04/12/ult2682u753.jhtm
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